A questão federativa, envolvendo a autonomia dos estados, cuja abordagem vem sendo adiada há muito tempo, constitui seguramente um dos maiores desafios da federação brasileira. Entre seus aspectos mais relevantes, sobressai-se uma solução definitiva para o problema da dívida com a União, proveniente da Lei nº 9.496/97, cujas sequelas representam um peso inestimável para os devedores sem oferecer nenhum benefício aos demais entes.
A pressão agora se tornou ainda maior, tendo em vista as sucessivas políticas de ajuste, agravadas com o teto de gastos, e com os devastadores efeitos da pandemia, com a queda das arrecadações e os encargos decorrentes da crise, a um tempo sanitária, econômica e social, recaindo sobre os Estados e Municípios. Como resultado, a capacidade de investimento das unidades federadas vem sendo sufocada e tornou-se iminente o colapso de políticas essenciais, de responsabilidade dos estados, em áreas como saúde, educação e segurança.
É bom lembrar que, se houve, à época, irresponsabilidade por parte de alguns gestores, uma parte não negligenciável das dificuldades fiscais dos entes federativos teve a contribuição da política financeira do governo central. A União impôs condições severas aos devedores, além de medidas associadas, como a privatização do sistema bancário. Entre as características dos contratos então firmados – que só deixaram de fora Amapá e Tocantins -, destacam-se:
– A fixação do IGP/DI como indexador dos saldos devedores (a limitação dos gastos públicos acabou levando à aplicação do IPCA);
– A cobrança de juros de 6% a.a. a 9% a.a. (a forma de capitalização dos juros também foi questionada, mas continuaram a ser calculados juros compostos);
– A amortização da dívida como parcela da receita corrente líquida (que poderia atingir até 13%);
– A capitalização dos saldos devedores e consequente rolagem e prorrogação dos vencimentos (prazo original de 20 anos, prorrogáveis por mais 10, alongado por mais 20 anos em 2016).
Soluções parciais e temporárias foram tentadas, sem resultados. De se ressaltar que, do ponto de vista das finanças nacionais, o pagamento da dívida dos demais entes perante a União é neutro, apenas aumenta o superávit ou reduz o déficit da União, em contrapartida, reduz o superávit ou aumenta o déficit dos devedores.
A título de ilustração, com base em nota pública da Federação Brasileira de Associações de Fiscais de Tributos Estaduais – FEBRAFITE, de 11 de fevereiro de 2019, a União financiou a maioria dos Estados a um custo de IGP-DI + 6% a.a., que, de dez/99 a dez/17, acumulou 1.379%, enquanto a inflação brasileira, medida pelo IPCA, atingiu 237%. Só para se ter uma ideia, o valor do empréstimo na origem, em 1998, que era de R$ 93,2 bilhões, até dezembro de 2011 os Estados tinham pago R$ 158 bilhões e, em 2016, a dívida total somava R$427 bilhões. Esses e vários outros dados evidenciam aquilo que vários estudiosos de Finanças Públicas têm manifestado: as dívidas dos estados com a União são impagáveis.
Em suma, os maiores devedores não tiveram – nem terão – a possibilidade de liquidar a dívida, pelas próprias condições de “atualização” do saldo devedor, pelo peso dos encargos incidente sobre o principal e pela sangria resultante dos desembolsos mensais. O comprometimento das receitas mensais torna inviável a perspectiva de os entes “pouparem” uma parcela que sequer permita a realização das despesas correntes, fato agravado com o baixo crescimento dos últimos quatro anos e a frustração na arrecadação desses exercícios. Nestas circunstâncias, qualquer prorrogação dos prazos de vencimento da dívida só fará prolongar a agonia do paciente, eliminando qualquer perspectiva de recuperação a médio ou longo prazo.
As novas gerações não devem continuar sendo penalizadas por condutas reprováveis de gestores do passado, magnificadas pelas condições insustentáveis com que a dívida constituída vem sendo cobrada. A recomendação categórica que se impõe é, portanto, a de cancelamento incondicional desses contratos, com (i) a suspensão imediata de todos os desembolsos a eles relativos e (ii) a destinação do montante de desembolsos realizados ao financiamento de um programa de recuperação via investimentos em infraestrutura, que contemple setores prioritários para a retomada do desenvolvimento, sob a coordenação e acompanhamento de representações da sociedade civil que lidem com finanças públicas, levando em conta a redução das desigualdades regionais e a valorização do trabalho. Uma contrapartida necessária, por parte dos estados, seria uma gestão mais responsável e eficiente dos recursos, inclusive ajustando remunerações exageradas de algumas castas do serviço público.