O Brasil entrou no mês de julho superando a marca de 1.4 milhão de casos confirmados e mais de 60 mil óbitos por COVID-19. Embora o cenário ainda seja de tendência de crescimento do número de novos casos diários, desde maio alguns governos estaduais e municipais vêm anunciado medidas de reabertura gradual de atividades econômicas que sob os decretos de distanciamento social eram classificadas como não essenciais. No país, os protocolos de flexibilização nem sempre são orientados por critérios objetivos, como a observação da taxa de transmissão da doença e da taxa de ocupação de leitos hospitalares para pacientes com COVID-19, e da identificação de novos casos por meio de procedimentos de testagem em massa.
As pressões dos setores econômicos pela retomada das atividades representam forças decisivas para a flexibilização dos decretos de distanciamento social. E sobre os primeiros resultados advindos desse movimento de reabertura econômica, há um mix de protocolos no país, em que alguns governos prosseguem com seus calendários de flexibilização, enquanto outros, diante de um rápido aumento de novos casos da COVID-19, voltaram a adotar medidas de distanciamento social mais rígidas.
Conforme mostra a Figura 1, a tendência de circulação de pessoas no Brasil como um todo foi de aumento, e sobretudo a partir de maio. Observa-se elevação na mobilidade para ambientes como os de trabalho e supermercados e farmácias, e redução na circulação em áreas residenciais. Nota-se que essa tendência não ocorre de maneira linear, alternando períodos de aumento com períodos de redução na mobilidade. Isso pode ser uma decorrência do conjunto variado de medidas de distanciamento social em vigor no país com e sem reabertura da economia.
Distanciamento social e reabertura econômica: um estado da arte para quatro estados do Nordeste
Na Região Nordeste, a COVID-19 atingiu a população dos estados do Ceará, Maranhão e Pernambuco com maior intensidade. Conforme é possível verificar pela Figura 2, o número de casos da doença no Ceará excede o dos demais estados incluídos na análise sobretudo a partir do 80º dia de epidemia. No caso do Maranhão, o número de casos superou o de Pernambuco no 60º dia, e chama a atenção que a curva do número de casos acumulados no estado pernambucano apresenta-se menos ascendente em relação à curva dos demais estados analisados. No caso do Rio Grande do Norte, o número de casos comparado ao dos demais tem sido menor (a partir do 40º dia), porém, com tendência de crescimento do número de casos ao final do período, antes do 100º dia desde o primeiro caso confirmado da COVID-19.
Considerando os estados do Rio Grande do Norte, Maranhão, Ceará e Pernambuco, até o dia 22 de junho, apenas o estado potiguar não havia implementado a abertura gradual de setores econômicos ditos não essenciais. Em 04 de junho de 2020, o RN decretou um conjunto de medidas rígidas de distanciamento social, tendo em vista um grave cenário de avanço da doença e de alta ocupação em leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Este decreto foi encerrado em 1º de julho, com o retorno de vários serviços e orientados por um cronograma de retorno das atividades econômicas.
Por sua vez, no Maranhão, em Pernambuco e no Ceará, o processo de reabertura econômica ocorreu mais precocemente, ainda no início de junho. No Maranhão, a Portaria Nº 34 de 28 de maio de 2020 estabeleceu protocolos específicos de medidas sanitárias por grupos de atividades econômicas, além daquelas mais gerais, com entrada em vigor a partir de 1º de junho de 2020. Em Pernambuco, a abertura gradual de setores não essenciais da economia também ocorreu a partir desta data. Orientados pelo Plano de Monitoramento e Convivência das Atividades Econômicas com a Covid-19, estabeleceu-se um cronograma de retomada de 32 atividades econômicas seguindo protocolos gerais e específicos de segurança contra a COVID-19. No caso do Ceará, o processo de reabertura da economia se iniciou em 8 de junho, com a entrada em vigor da Fase 1 do Plano de Retomada Responsável das Atividades Econômicas e Comportamentais no Ceará. Nessa etapa, algumas atividades comerciais foram retomadas parcialmente, e apenas em Fortaleza. Em 22 de junho, a capital cearense entrou na Fase 2, com maior abertura de setores da economia, como restaurantes e templos religiosos. Nessa mesma data, a Região Metropolitana de Fortaleza entrou na Fase 1, e os demais municípios que não estavam em distanciamento social rígido, entraram no período de transição.
Flexibilização de atividades econômicas e a mobilidade da população
As Figura de 3 a 7 ilustram para os quatro estados analisados as tendências de mobilidade considerando cada uma das 5 atividades captadas pela Google: locais de compras, supermercados e farmácias, locais de trabalho, estações de trânsito e parques.
Com relação aos locais de compras (e que também incluem locais de recreação), percebe-se para o Rio Grande do Norte uma redução da circulação de pessoas a partir da data do decreto de distanciamento social rígido (04 de junho). Percebe-se um aumento da tendência de circulação nesses locais por volta do dia 15 de junho, mas que se estabilizou até o final do período analisado (Figura 3).
No caso dos estados que adotaram medidas graduais de reabertura econômica, chama a atenção o caso do Maranhão, cuja tendência prévia de circulação de pessoas em locais de compras era de aumento, e assim se manteve no período pós-decreto de reabertura de atividades econômicas não essenciais. E em níveis acima da média nacional, conforme ilustrado pela Figura 3. A mobilidade nesses locais para os estados do Ceará e Pernambuco ocorreu em níveis abaixo daquela registrada para o Maranhão e Brasil, e compatíveis com as fases de reabertura do comércio adotadas por esses estados. Por exemplo, segundo o Plano de Monitoramento e Convivência das Atividades Econômicas com a Covid-19 de Pernambuco, a partir do dia 15 de junho, shoppings centers, centros comerciais e praça de alimentação estavam autorizados a funcionar pelo sistema de coleta, ou seja, os clientes poderiam retirar produtos comprados por telefone ou pela internet nesses locais. A partir desta data, verifica-se pela Figura 3 uma elevação na tendência de circulação de pessoas em locais de compra em Pernambuco .
No caso dos supermercados e farmácias, observa-se no Maranhão e em Pernambuco uma grande circulação de pessoas, e em níveis similares ao período pré-pandemia (Figura 4). A despeito do que foi planejado pelas autoridades no que se refere ao retorno gradual à “nova normalidade”, é possível que para algumas atividades econômicas específicas a movimentação de pessoas esteja acima do previsto. No caso do Ceará, apenas a capital Fortaleza foi autorizada a entrar na Fase 1 do Plano de Retomada Responsável das Atividades Econômicas e Comportamentais no Ceará, quando foi permitido o funcionamento de um conjunto limitado de atividades econômicas. E isso possivelmente explica o nível de mobilidade em supermercados e farmácias no Ceará ter sido bastante inferior ao observado para Pernambuco e Maranhão, que são estados que também implementaram planos de reabertura econômica.
No caso do Rio Grande do Norte, o decreto de 4 de junho também produziu efeitos sobre a circulação de pessoas nesses ambientes. Conforme observado na Figura 4, a tendência de mobilidade em supermercados e farmácias apresentou redução a partir desta data, e embora tenha mostrado sinais de elevação por volta de 15 de junho, ao final do período a tendência voltou a ser de decrescimento.
No que se refere à circulação em locais de trabalho (Figura 5), em todos os estados que adotaram medidas de retomada econômica a tendência foi de aumento da mobilidade. Apenas no estado do Maranhão, o nível de circulação foi superior à média nacional, e no caso do Rio Grande do Norte, a tendência ao final do período foi de estabilização.
A Figura 6 apresenta a tendência de mobilidade em locais de trânsito. Neste caso, apenas o estado de Pernambuco se situou acima da média nacional em termos de mobilidade em estações de metrô, ônibus e trem. Com a retomada de parte das atividades econômicas a circulação de trabalhadores tornou-se maior, o que chama a atenção para o cumprimento de medidas sanitárias de higienização de terminais e meios de transporte, além do uso obrigatório de máscaras. Todavia, são relatadas aglomerações e inobservância dessas medidas nas estações de trânsito, o que pode contribuir para o espraiamento da doença entre trabalhadores e usuários.
Por fim, a tendência de mobilidade em locais de parques (que inclui as praias públicas, marinas, parques, praças e jardins públicos) é ilustrada na Figura 7. No Maranhão, verifica-se maior nível de circulação nesses locais desde a segunda quinzena de março e em relação à média nacional e à média dos demais estados incluídos na análise. No estado maranhense, a lotação nas praias e durante o período de flexibilização do distanciamento social tem sido relatada. Em relação ao Ceará, observa-se uma baixa mobilidade em locais de parques, ainda que ao final do período uma leve tendência de crescimento tenha se apresentado. No estado cearense, no período de vigência do plano de abertura gradual da economia continuava proibida a circulação de pessoas em locais públicos, como praias, calçadões e praças. No Rio Grande do Norte, o decreto mais rígido de distanciamento social de 4 de junho direcionou esforços também para uma maior fiscalização na orla, e a mobilidade para a categoria da Google que inclui as praias se manteve em níveis baixos.
Adesão ao distanciamento social e flexibilização de atividades econômicas no RN
As experiências de estados como Maranhão, Pernambuco e Ceará são importantes balizas para o estado do Rio Grande do Norte que iniciou seu plano de reabertura econômica em 1º de julho. Um dia antes, no dia 30/06 a capital potiguar anunciou a abertura do comércio e por etapas.
Conforme ilustrado pela Figura 8, com o decreto estadual que enrijeceu as medidas de distanciamento social vigentes, o nível de distanciamento social no RN, e sobretudo em Natal, aumentou durante alguns dias. Porém, assim como observado no início da pandemia no estado, nas semanas seguintes o nível de adesão da população diminuiu e encerrou o período analisado em queda. Diante desse cenário, o processo gradual de reabertura econômica pode ser afetado por uma circulação de pessoas acima do recomendável.
Conclusões
Passados três meses em que, na maior parte do país, apenas as atividades econômicas consideradas essenciais se encontravam em funcionamento, vários estados e municípios brasileiros começaram a implementar protocolos de reabertura econômica das atividades consideradas não essenciais.
Embora a transição para o “novo normal” seja planejada pelos governos para ocorrer em etapas, verifica-se para alguns casos que a circulação de pessoas tem se mostrado acima do previsto. Por exemplo, dados da Googleanalisados nesta nota mostraram que no Maranhão e em Pernambuco o nível de circulação de pessoas em supermercados e farmácias foram similares ao registrado para o período anterior à pandemia. Esses resultados sugerem que os protocolos de reabertura econômica devem vir acompanhadas de medidas de regulação, conscientização e fiscalização das regras estabelecidas para que o retorno à “nova normalidade” não favoreça a multiplicação dos casos da COVID-19.
Nesse sentido é importante que os governos que optaram pela abertura econômica avaliem e revisem os seus protocolos, e com relação à variação do número de caso de COVID-19 após o período de flexibilização, e também com relação a dados que apontem a variação na mobilidade das pessoas. No caso do Rio Grande do Norte, que adotou medidas de reabertura econômica apenas no início de julho, a adesão ao distanciamento social já se encontrava em níveis mais baixos, e isso deve ser levado em consideração para a aplicação de medidas mais flexíveis de funcionamento do comércio.
Segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde Pública (Sesap/RN), no dia 02/07/2020 a taxa de ocupação de leitos críticos de COVID-19 no estado era de 85%. Embora indicadores como o número de solicitações por leitos para pacientes com essa doença tenha se reduzido a partir do dia 23/06, um aumento da circulação de pessoas em número superior ao previsto para as fases de reabertura econômica pode favorecer um maior contágio pelo vírus e ocasionar um agravamento desse quadro.
Ivanovitch Silva – Professor adjunto do Instituto Metrópole Digital da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (IMD/UFRN) e vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Elétrica e de Computação (PPgEEC/UFRN)
Luciana Lima – Professora adjunta do Departamento de Demografia e Ciências Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DDCA/UFRN) e vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Demografia (PPgDEM/UFRN).
Patricia Takako Endo – Professora adjunta da Universidade de Pernambuco (UPE) e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Engenharia da Computação (PPGEC/UPE).
Marcel Ribeiro-Dantas – Pesquisador no Institut Curie (UMR168), Mestre em Bioinformática (UFRN) e doutorando na L’école doctorale informatique, télécommunications et électronique (EDITE) da Sorbonne Université (Paris).
Gisliany Alves – Graduada em Ciências e Tecnologia e em Engenharia de Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e mestre em Engenharia Elétrica e de Computação (UFRN).
Confira essa e outras análises demográficas também no ONAS-Covid19 [Observatório do Nordeste para Análise Sociodemográfica da Covid-19] https://demografiaufrn.net/onas-covid19